A saga de uma família de retirantes cearenses, comedores de rapadura,
rumo à terra onde a Cana dá.
Fortaleza -> Ceará -> Brasil -> Canadá -> Quebéc -> Québec
sexta-feira, 14 de maio de 2010
O que o gelo nos ensina
Esquisito o título, não? Como pode um objeto inanimado nos ensinar algo?
A Lara vai bem na escola. Ela já fala algumas frases em francês e aprende rápido, mas o tempo durante o qual ela está na escola é pouco para que ela possa conversar. Por isso, ela ainda não fala na escola, embora entenda muita coisa e tenha boas amizades. Porém, nesta semana, ela resolveu responder présent/presente durante a chamada. Os colegas começaram a rir. A professora logo tratou de explicar que não se deve fazer isso e pediu para que aplaudissem a iniciativa dela. Criança é espontanea e ri sem maldade. E a Lara pronuncia muito bem. É tanto que eu corrijo a minha pronúncia pela dela em certas palavras que ela conhece melhor. Provavelmente riram porque não esperavam que ela respondesse dessa vez.
Mas quando a Mônica me contou isso, fiquei com um aperto no coração. Hoje a Lara é bem desinibida e fazia apresentações de dança para um público que lotava o grande auditório. Mas antigamente ela era super tímida e ficava muda quando encontrava alguém pelas primeiras vezes. Definitivamente não é um bom primeiro passo, mas um escorregão inesperado, seguido de uma queda.
E hoje foi a minha vez. Cheguei super empolgado no trabalho com a vitória dos Canadiens de Montréal que eliminaram o adversário estadunidense por 5 a 2 e foram para as semifinais da copa Stanley de hockey. Eu puxei a conversa mas em poucos segundos os colegas de trabalho começaram a conversar falando muito e em pouco tempo. É o tipo de conversa muito dinâmica onde as pessoas disputam uma oportunidade para falar. Devido a minha limitada capacidade de expressão, fiquei excluido do grupo. O almoço foi em um restaurante perto do trabalho para comemorar a contratação do novato que está trabalhando há umas duas semanas e o fim de uma etapa difícil do trabalho. Não deu outra. O novato, que é québécois, se integrou muito rapidamente, já contando estórias e fazendo piadas. E eu nem mesmo as entendia porque além de falarem rápido e mais displicentemente, tinha barulho no restaurante. Entre os risos dos bate papos animados, ao menos pude conversar um pouco com o indiano que, apesar de morar aqui no Québec há cinco anos e entender bem o francês, também ficou literalmente de canto como eu. No caso dele, acho que mais por ser muito sério.
Novamente, não fazem por mal mas sim por ser algo natural conversar e se divertir, mas é difícil para mim porque gosto muito de interagir com as pessoas. Me senti como a Lara na escola.
De repente, quando menos esperamos, estamos caídos no gelo, avaliando o que está machucado, doendo, e vendo as outras pessoas de baixo para cima com um sorriso no rosto por causa da nossa queda. Criança cai quando está aprendendo a andar e por alguns anos mais por não dominar bem os movimentos em todas situações. Mas quando um adulto cai, dói no corpo mas também no orgulho. É humilhante e vergonhoso para nós adultos cair. Mas não no gelo!
Quando ensinava a Lara a patinar, mostrava para ela. Veja só. Todo mundo cai, ri, se levanta e daqui há pouco, cai outra vez. É normal e até os mais experientes e hábeis de vez em quando cometem algum deslize e caem também. Os jogadores que hockey passam o jogo caindo, mas muitas vezes conseguem se levantar de um salto e continuar na mesma jogada. Após algum tempo, ela percebeu o que eu queria dizer que o importante não é evitar ao máximo a queda, mas sim saber se levantar, não desistir e continuar treinando. Foi nessa hora que ela, mesmo caindo mais, passou a aprender mais rápido e a se divertir mais. E com o tempo, ganhamos habilidade e desfrutamos cada vez mais, caindo cada vez menos.
É isso que o gelo nos ensina como metáfora para a vida. A Lara passou a responder a chamada todo dia e ninguém mais ri dela. Já no meu caso, depois desse mesmo almoço, consegui fazer com que meus colegas dessem algumas boas gargalhadas, mesmo falando errado, misturando com inglês e fazendo mímicas.
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é engraçado, mesmo. a gente ser tão articulada e voltar a falar como uma criança de 4 anos em outro idioma!
ResponderExcluir:P
gostei imensamente da narrativa, uma ótima metáfora, vc demonstrou bastante coragem, parabéns! Minha filha, genro e neto, aguardam visto, com certeza enfrentarão etapa semelhante, sucesso!!!
ResponderExcluirNuma situação dessas que inevitavelmente acabamos passando o segredo é não ter medo. É soltar a língua sem medo de ser feliz. Parabéns por estar enfrentando e muito bem esse empecilho. Sucesso.
ResponderExcluirE a vida segue...
P: Tens toda razão.
ResponderExcluirAnônimo: Muito obrigado. Boa sorte para os futuros imigrantes.
César: Obrigado, fiel leitor.
já que tens preocupação com a língua materna, derrepente tudo junto não existe, o correto é de repente, grande abraço, o blog é ótimo
ResponderExcluirJá corrigi. Gosto mesmo do nosso idioma e estava realmente feio! Obrigado!
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